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Parque Estadual vira símbolo de injustiça: expulsos da Serra das Andorinhas ainda esperam reassentamento

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Famílias expulsas da Serra das Andorinhas aproveitaram a visita presidencial em Araguatins para manifestar, pedindo justiça e o reassentamento prometido há quase três décadas / Foto: Mágson Alves

A reportagem que você vai acompanhar começou de forma inesperada. Durante a visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à cidade de Araguatins, no Tocantins, no dia 27 de junho de 2025, onde eram entregues títulos de terra a famílias do Bico do Papagaio, A equipe do Anexo Times e Bicoline foi surpreendida. Entre aplausos e discursos, duas pessoas se aproximaram de nós, pedindo espaço para falar. Não pediam apenas uma entrevista, pediam para registrar em vídeo a dor, a indignação e o sofrimento que carregam há décadas.

Eram representantes de uma história quase esquecida: famílias expulsas da Serra dos Martírios/Andorinhas, no sudeste do Pará, um território de 60 mil hectares onde a floresta amazônica encontra o cerrado. Ali, onde hoje existe um parque estadual, antes havia comunidades inteiras vivendo da terra, cultivando roças, criando animais e preservando o ambiente que chamavam de lar. Mas, com a criação do parque, no final dos anos 1990, a vida de mais de 70 famílias virou um ciclo de promessas não cumpridas, indenizações irregulares e reassentamentos que nunca saíram do papel.

Foi nesse contexto que ouvimos o desabafo de Gisela Guimarães, presidente da Associação dos Moradores da Serra das Andorinhas, que denuncia o abandono e a falta de interesse político em resolver o reassentamento prometido. Ao lado dela, o relato de João Lacerda, ex-morador que viveu 35 anos na serra, expulso com sua família sob ameaças, perseguições e com casas queimadas por agentes do Estado.
Essas vozes, silenciadas por anos, romperam o barulho das solenidades oficiais para expor um drama que envolve violações de direitos humanos, omissão do poder público e a luta de famílias que só pedem uma coisa: o direito a uma terra para viver com dignidade.

Uma região marcada por história e violência
A Serra das Andorinhas guarda registros de ocupação humana de até 500 mil anos atrás. Além disso, tem gravuras rupestres e até sinais da presença de jesuítas no século XVII.
Nos anos 1970, a região foi palco de um dos capítulos mais violentos da história recente do Brasil: a Guerrilha do Araguaia. Centenas de pessoas desapareceram ou foram mortas pelo Exército, e muitas famílias foram expulsas de suas terras.

O nascimento do parque e os primeiros conflitos
Em 1996, o governo do Pará decretou a criação do parque. E em 1995, ele foi oficializado com 60 mil hectares de área protegida. O problema é que já havia famílias morando e produzindo naquela terra. De repente, elas passaram a viver em um lugar considerado “ilegal”.Desde então, começaram as reuniões, negociações e promessas de reassentamento. Só que, quase sempre, os acordos não saíam do papel.

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Quem está nessa história
As famílias e associações: trabalhadores rurais que sempre viveram da terra, organizados em associações como a AMEPVSSA-PA (Associação de Moradores Extrativistas e Produtores do Vale da Sucupira).

Órgãos do governo: a SEMA (Secretaria de Meio Ambiente do Pará), responsável pelo parque; o INCRA, que deveria reassentar as famílias; o ITERPA, que cuida das terras no Pará; além do Ministério Público, da Defensoria Pública; e o Ideflor-Bio (Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade do Estado do Pará), gestor do Parque Estadual Serra dos Martírios/Andorinhas, responsável pela integridade ambiental e pela regularização dos processos ecológicos na área.
Empresas: a Eletronorte, citada como possível financiadora de terras para reassentamento.

Reuniões, promessas e nada de solução
Em 2001, uma reunião importante em São Geraldo do Araguaia já mostrava os problemas: o INCRA não tinha cumprido nem a promessa de entregar cestas básicas, o ITERPA não tinha as listas de terras disponíveis, e o Ministério Público sequer apareceu.

Nos anos seguintes, acordos foram assinados permitindo que as famílias continuassem em áreas já abertas, mas proibindo novas plantações. A SEMA chegou a registrar 120 propriedades e 70 famílias em 2006, mas nunca atualizou esses dados.

Em 2010, a Comissão Nacional de Combate à Violência no Campo cobrou o reassentamento de 170 famílias. Nada aconteceu.

Em 2011, cansados de esperar, movimentos sociais ocuparam o prédio da SEMA. A resposta do governo foi fria: não havia dinheiro para indenizações imediatas.

Indenizações que nunca chegaram direito
Em 2014, parecia que finalmente viria a solução: o governo anunciou o pagamento de R$ 18,9 milhões em indenizações para 138 famílias. Cada uma deveria receber entre R$ 75 mil e R$ 117 mil.

Só que logo depois começaram as reclamações: muitos moradores disseram não ter recebido nada. Outros afirmaram que os valores pagos foram menores do que os prometidos.

Em 2017, o INCRA começou a negociar a compra da fazenda Estrela, do fazendeiro José de Almeida, para reassentar os moradores. Mas a associação de trabalhadores não foi nem avisada sobre a visita técnica.

No ano seguinte, a Defensoria Pública rejeitou a área: não havia estrada, escola, posto de saúde ou infraestrutura mínima. Mais uma promessa que ficou pelo caminho.

A luta que atravessa gerações
Em 2020, moradores foram até Brasília pedir ajuda ao governo federal. Em 2025, a associação voltou a enviar ofícios para órgãos estaduais e federais, cobrando uma solução. O pedido era direto,

“Somos trabalhadores rurais, precisamos de terra para sobreviver.”

O que fica
O Parque Serra das Andorinhas é apresentado como símbolo de preservação da natureza no Pará. Mas, para as famílias que viviam lá muito antes de sua criação, ele virou um símbolo de abandono.
Quase 30 anos depois, elas ainda aguardam uma resposta definitiva. Enquanto isso, vivem num limbo: não têm terra para produzir nem as indenizações que o governo prometeu.

O parque protege a floresta e os sítios arqueológicos. Mas quem protege as pessoas que sempre viveram ali?
A reportagem procurou o Ideflor-Bio para esclarecer o uso dos quase R$ 10 milhões em recursos de compensação ambiental, oriundos da Usina Termoelétrica Novo Tempo Barcarena. Foram enviadas perguntas sobre o destino do dinheiro, os critérios para indenização das famílias e denúncias de má gestão.

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Até a publicação desta reportagem, não houve resposta.

Vale destacar que os documentos disponibilizados por nossas fontes já configuram provas contundentes da negligência do Estado na proteção do PESAM. Esses registros evidenciam falhas graves na fiscalização, irregularidades em processos de compensação ambiental e descaso com a integridade da unidade de conservação, colocando em risco ecossistemas, comunidades e direitos ambientais garantidos por lei.

Além de ouvir os relatos e reunir documentos que comprovam décadas de negligência, nossa equipe também protocolou uma denúncia formal no Ministério Público Federal, pedindo a abertura de investigação sobre as violações de direitos humanos e a omissão do poder público em relação às famílias expulsas da Serra dos Martírios/Andorinhas. O objetivo é garantir que os órgãos responsáveis sejam cobrados, que os recursos de compensação ambiental sejam fiscalizados e que, finalmente, as famílias tenham acesso ao reassentamento digno que lhes foi prometido.

Daiane Silva, 24 anos, é jornalista tocantinense e augustinopolina de berço. Já trabalhou em rádio e fez assessoria política nas eleições municipais de 2024. Apaixonada por livros-reportagem e inspirada no trabalho de Roberto Cabrini, sonha em seguir no jornalismo investigativo. Também pretende se aprofundar em Ciência Política para entender ainda mais sobre o cenário político e social.

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